sexta-feira, 15 de maio de 2015

José Luís Pais "PINTURA RASGADA" - 15 a 21 de maio

RUPTURA DA MATÉRIA                           

É o pintor que diz: ruptura. E o que escreve vai ao dicionário (Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa).

Ruptura: Acção pela qual uma coisa se rompe; estado de uma coisa rota;
rompimento, quebra, fractura; abertura, greta, fenda.

É o pintor que diz: E o que escreve vai ao dicionário.

Matéria: aquilo de que os corpos são formados, coisa extensa, divisível e
impenetrável; o que afecta os sentidos; por oposição a espírito ou forma ou alma.

É o pintor que junta: ruptura da matéria. E o que escreve olha para os quadros.

E vê o quê?

O que escreve vê o que o pintor pintou. E como se escreve isso? São formas de
cor, sim, pedaços de fotografias, de jornais, aquilo que se vê. São coisas do
mundo vistas aos olhos das cores dele.

O que escreve não sabe o que escreve. Está bem, a pintura é para se ver, não
para andar à volta a falar, a suspirar, a dizer que sim e que não. O que escreve
devia ficar calado a aprender a olhar.

Mas o que escreve gosta de escrever tal como o que pinta gosta de pintar. Gostar?
Gostar, talvez não seja o verbo adequado. Não se escreve porque se gosta, nem
se pinta porque se gosta. Gosta-se de outras mais agradáveis e mais fáceis.
Gosta-se antes de um bonito casaco, de um café antes do cigarro, de um beijo
bem dado.

Nem sempre se gosta do que tem de ser mostrado. E é o caso. E até era melhor
nem se ver. E é o caso.

Rompimento. Fractura. Quebra.

Mas o pintor vê o que os outros não vêem. É defeito de profissão, por assim dizer.
Não se escolhe ser pintor, tem de se ser. E o pintor vê e pinta o que mais ninguém
vê. O que escreve é um caso cego. Mas confia naquele que vê.

Quem vê é olho, alma, ou espírito. O que e visto é matéria. Do choque aparece a
forma, a cor, a luz. Para pintar e preciso começar por algum lado. Romper,
por exemplo, a matéria. E mostrar que ela não é senão para isso, para ser
rompida. O pintor executa a sua profissão: deixa ver outra coisa.

Abertura, greta, fenda.

O que escreve preferia ver a ficar calado. O que pinta sabe que não há as palavras
que digam o que pintou. Nem uma simples cor tem nome que a diga. Já se vê.

Ruptura da matéria, quer dizer, ver o que não se deixa ver e mostrá-lo.

O que escreve agradece o trabalho do pintor e, já no fim, cala-se.
                                                                                                        (Pedro Paixão)